15/09/2009

O Livro de Cabeceira...final

Algumas idéias acerca do Filme The Pillow Book de Peter Greenaway  e muito inspiradas pelo trabalho de Sérgio Telles1 , que comenta aspectos cinematográficos à luz da Psicanálise e o qual fez tão bem em  seu livro "O Psicanalista vai ao cinema" que acabei de ler recentemente.

Como anteriormente falado, procurei traçar algumas observações das quais me furtei em fazê-las anteriormente, por ter entendido que esta é uma obra formidável, complexa, das melhores na minha opinião de Greenaway, onde convergem e coexistem questões próprias à linguagem, como a representação e principalmente a riqueza de simbolização, para meu gosto pessoal.

Obviamente que o filme permite outras linhas interpretativas, mas toma-se aqui o  "Complexo de Castração da personagem feminina" que decorre das especificidades do desejo paterno.
A Identificação de  Nagiko pelo Pai. Sendo filha, no seu íntimo há a obrigação de resgate da honra de seu pai, que foi humilhado. A relação paterna pode ser mostrada pela inscrição no corpo dela, tão esperada sempre a cada aniversário seu,  uma expressão edipiana, que define visualmente o amor do pai pela filha.

Este ritual afetou sua vida para sempre, pois Nagiko, depois da perda do pai, procura por amantes que saibam escrever em seu corpo, como ele tão bem fazia e  pela qual ela procura reencontrar pela escrita das mãos de outro alguém, a demonstração do amor que tanto  espera.
 – É que é a escritura o que desperta o corpo para o erotismo, dos odores, dos sabores, das pressões do desejo. Não seria todo o corpo, enquanto corpo humano o lugar de uma escritura? Desde as primeiras carícias e os primeiros olhares, cada corpo é o espaço de uma tatuagem invisível que as mãos do amor saberão ou não despertar. (Saal, 1998).


Braunstein mostra-nos também que :
- Somos o que vemos, uma sequência de imagens tatuadas na carne, uma soberba catedral de letras, gravações de desejos superpostos, de mensagens enigmáticas, de um gozo cifrado em um corpo que é uma charada...  o gozo está cifrado, é um hieróglifo escrito em nossa carne pelo desejo do outro... (Braunstein, 2001).

Mas paira  uma questão : O pai humilhado (supostamente usado, violentado, extorquido pelo editor)  não seria um fantasma de Nagiko?Ou seja  uma construção sua, uma versão própria comprada por si mesma, como uma fantasia histérica, que precisa salvaguardar o papel do falo vingador, salvando o pai impotente?

Na sua vida adulta, Nagiko abre sua compreensão de forma diferente. Mas ainda espera que o marido (o sobrinho do editor de seu pai) repita tal gesto do pai, que escreva em seu corpo, o que ele recusa, e ainda a ridiculariza por ter ambições literárias. Como sequencia disto resulta o fracasso do casamento. Ela se vinga, queimando toda a casa e foge para Hong Kong.

Mas a mudança da compreensão passa a se dar no momento em que ela conhece Jérôme, um tradutor bissexual, quem foi que sugeriu a ela que se mudasse os papéis : ele assumiria o papel passivo, enquanto Nagiko assumiria o lugar ativo, ou seja ela seria a escritora de corpos. Ela hesita no início, temendo perder o prazer circunscrito à posição passiva. Mas acaba aceitando a idéia e percebe que isto também é prazeroso a ela.  Da compulsão passam para a repetição do ato. Neste contexto,  ela sente que o encontro com ele passa a ser decisivo, pois vai passar por situações semelhantes aos que teve com o pai. Nagiko se apaixona por Jérôme e sente-se enciumada, quando Jérôme vai ao encontro do Editor e não volta imediatamente como ela esperava. Ela passa a re-atualizar as experiências pelas quais passou e tenta elaborar de outro jeito ou pelo menos de forma mais satisfatória a si. Mas, do tal ciúme re-atualizando seu conflito passado, ela sente a necessidade de vingar seu pai contra o Editor. Nagiko estaria negando o desejo homossexual do pai, a cumplicidade que existia nesta ligação; que é a mesma que ela se depara com referência a Jérôme e o mesmo Editor.
Até então, o que se referia ao pai, ela negou, reprimiu e transformou numa relação de força e humilhação que o pai sofrera por parte deste Editor. Assim, ela protegeu o pai contra seu próprio ódio. Agora, não mais se sustenta a versão que tinha do pai humilhado e constata o prazer e concordância existentes. Assim como o é também quanto a Jérôme. Nagiko odeia o pai, se dá conta disto, transfere ao editor o ódio destinado ao pai. Não estaria ela vingando o pai, matando o Editor; mas sim vingando-se do pai na figura do Editor.

Nagiko encontra-se fixada ao desejo do pai, aprisionada em algum lugar fálico. Diante desta certeza é desta forma que ela aluga os homens que a poupam de ser castrada e desprezada enquanto mulher. Somente após a morte de Jérôme e o assassinato do Editor (homens que desprezavam o sexo feminino e bem representam o pai) é que ela pôde adquirir a liberdade do encarceramento fálico e identificar-se de maneira total com Sei Shonagon (mulher escritora que gozava da literatura tanto quanto do sexo).

A figura materna é apagada de Nagiko, mas ela conhece a figura idealizada de Sei Shonagon, que lhe foi apresentada pela tia.  O Salto a ser dado encontra-se inicialmente nos Treze livros escritos por ela em corpos masculinos que colaboraram para a resolução de seu complexo de castração, estabilizando sua identidade feminina após o abandono da crença de que só seria potente, amada e reconhecida se armada com o emblema fálico. A tatuagem que fez depois e visível ao amamentar sua filha, bem diferente das inscrições laváveis e efêmeras que deixava fazer em seu corpo e executava nos corpos masculinos mostra bem tal estabilização. 

Por fim, pode aceitar realmente sua sexualidade feminina bem como se ver como uma escritora, acreditar em seu talento, no poder dos seus escritos, nem precisando  mais do representante fálico.

As "Representações da Palavra" remetem à linguagem, cujo papel deste evidencia-se no processo secundário, que possibilita a identidade do pensamento. Pontalis chama isto de "Melancolia da linguagem", a linguagem como substituto do objeto amado, perdido, como presença ausente:
- ... a fala reconduz ao objeto perdido, para dele se desligar... Separar-se, desunir-se do objeto e de si, desligar-se do semelhante ao idêntico, medir incessantemente a distância entre a coisa possuída e a palavra que a designa, e que ao designá-la, diz de imediato que ela não está ali. (Pontalis, 1991).





Sérgio Telles – Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo)

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2 comentários:

Rascunhos de Anthony/Angelo disse...

Maravilha de postagem!
Meus parabéns.
Amo cinema e o que divulga, divulga ainda mais o cinema que vale a pena!
Angelo Riccherti

Manoela Afonso disse...

olá, belíssima música em seu blip.fm! obrigada pela visita ao meu diário... nossa, foi em julho, e já vamos para outubro... mas sou assim, sem pressa, para então poder ler e ouvir as melhores coisas que circulam por aqui, nas redes. gostei muito da proposta do seu blog. abraços!